Ainda a crise das carnes

Credibilidade é essencial para um produtor de alimentos.
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Temos conseguido sozinhos destruir a nossa com sucessivas denúncias da Polícia Federal (PF) e, na sequência, acordos de leniência assumindo malfeitos, mas deixando sequelas não resolvidas. Têm faltado foco, prioridade e competência aos setores privado e público para um emergencial processo de reconstrução da credibilidade do País como produtor de alimentos. Essencial, porém, os responsáveis pelos erros assumirem sua parcela de culpa para avançarmos.

Em marco de 2017 a PF, com enorme estardalhaço, apresentou a chamada Operação Carne Fraca, anunciando falhas graves na inspeção sanitária de produtos de origem animal. A imediata ação do governo federal conseguiu retirar da operação equívocos absurdos apresentados no início. O triste espetáculo da PF deveria ter levado a penalidades dos responsáveis. Mas sobrou o que tinha de verdadeiro na operação. O que não era pouco.

Em marco de 2018 a PF apresentou a Operação Trapaça, desta vez direcionada a uma empresa do setor. Os dias se passaram, os excessos foram acomodados, mas também sobrou o que tinha de verdadeiro.

Esta semana, relatório da PF sobre a Operação Trapaça indiciou mais de 40 dirigentes e funcionários de uma grande empresa. Na sequência, foi divulgado que se negocia acordo de leniência da empresa com o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União. Esse novo acordo fatalmente levará a funcionários públicos que teriam atuado conjuntamente de maneira irregular. Já circulava a informação de que na delação premiada de um dos irmãos da outra empresa líder do setor existiria uma lista com duas centenas de nomes.

A Operação Carne Fraca identificou a atuação criminosa de funcionários públicos na Superintendência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no Paraná. Processos administrativos no âmbito do Mapa e judiciais iniciados pelo Ministério Público vêm produzindo resultados com demissões e penalidades.

De imediato ficou muito claro que pressões espúrias no âmbito daquela superintendência permitiam ações junto a fiscais federais que criavam oportunidades de gestão irregular na inspeção sanitária. Rapidamente se desenvolveu proposta de alteração estrutural, retirando os fiscais da subordinação administrativa que tinham nas superintendências estaduais, passando a, além de continuarem a responder tecnicamente à Secretaria de Defesa Agropecuária, também se subordinarem funcional e administrativamente diretamente a Brasília.

Era uma resposta importante e rápida, pois a operação da PF reduziu drasticamente a credibilidade do serviço de inspeção do País. Identificada em poucas semanas, com apoio do setor privado e do quadro de fiscais, foi remetida, já com atraso de cinco meses, pela Secretaria de Defesa Sanitária aos escalões superiores. Infelizmente, não recebeu o tratamento emergencial que exigia. Ficou parada e só foi formalizada um dia após o trauma da nova operação da PF. Falta o responsável reconhecer o erro.

Foram meses de atraso absolutamente desnecessários. A sequência ainda exigiria avanços importantes na forte implementação de regras de conformidade, tanto no âmbito público como privado, que começaram com grande atraso, timidamente, a ser tratadas.

Exigiria a modernização dos serviços de inspeção, fortalecendo rapidamente políticas de autocontrole pelas empresas, sempre sob fiscalização federal. Exigiria também a transferência, sempre que possível, de serviços de inspeção para os Estados, fortalecendo o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa), à semelhança do SUS. É preciso aproximar a fiscalização do fiscalizado sempre que possível.

A perda de credibilidade do Brasil, ainda não reconquistada, e agora agravada com esta terceira operação, não foi enfrentada com foco e eficiência. Passamos a culpar o protecionismo dos países importadores. Protecionismo que sempre existiu, e continuará a existir, com o qual conquistamos e ampliamos mercados. Culpar agora o protecionismo é não assumir erros. Procura-se um culpado em terceiros. Tira-se o foco do que é realmente necessário. De novo perdemos tempo precioso.

Chegamos ao absurdo de dar prioridade a um potencial contencioso, no âmbito da OMC, com a União Europeia, totalmente inoportuno, pois os problemas recentes foram causados pela perda de credibilidade. O esforço de reconstrução da essencial credibilidade na exportação de alimentos ficou perturbado por bravatas.

O crescimento exponencial das exportações nas últimas décadas, sem a adequada evolução das regras e dos critérios de política pública, criou esse tipo de problema. Foi tudo muito rápido, sem a adequada modernização do arcabouço regulatório, que segue com regras obsoletas, ignorando princípios modernos de gestão de inspeção de produtos alimentares. O jeitinho brasileiro acomodou imperfeições que podem até ser compreensíveis para nós. Não deveriam ter ocorrido e teremos enorme dificuldade para explicar aos importadores.

O Brasil tem qualidade. O parque industrial é dos melhores do mundo, até por ser recém-construído. O corpo técnico do setor privado, extremamente qualificado. Os funcionários públicos na inspeção federal também são muito qualificados, honestos e bem remunerados. Exceções negativas existem em qualquer lugar de qualquer país e precisam ser punidas e eliminadas. Mas não se pode condenar o todo pela falha de não termos conseguido avançar na modernização do relacionamento público-privado. O que era válido 40 anos atrás para um setor incipiente de mercado interno, pressionado como foi ao nos tornarmos um dos maiores do mundo, estressou o sistema regulatório e não reagimos a tempo.

A existência do problema é conhecida de todos, governo federal e setor privado, há muito tempo. Uma reação inapropriada é, no mínimo, indesculpável após a Operação Carne Fraca, em 2017. Não temos ainda uma clara resposta satisfatória.